Terrorismo alimentar é central a conflitos contemporâneos, diz economista curdo

23/01/2019

Saman Salih durante sua visita ao Rio em 2018 Foto: Divulgação/Tulio Thomé

 

Publicado originalmente por Bruno Calixto em O Globo – 22/01/2019 – 16:00

Iniciativas de gastronomia social buscam transformação de impacto positivo para populações vulneráveis pela tecnologia

Uma comitiva do Movimento de Gastronomia Social Gastromotiva está em Davos para o Fórum Econômico, onde anuncia avanços da plataforma digital criada no Brasil para impulsionar a discussão sobre o poder do alimento como ferramenta de transformação social frente aos desafios globais como fome, má nutrição, exclusão social e falta de oportunidades.

O grupo comandará um café da manhã na quinta-feira e apresentará os 11 primeiros HUBs do movimento no mundo, além de exibir o teaser de um documentário (“Table for All – Social Gastronomy dialogues”) produzido durante o Social Gastronomy Summit e a plataforma digital do programa. Um dos membros é o economista curdo Saman Salih, especialista em gastronomia social radicado nos EUA.

De passagem pelo Rio para encontro do programa Social Gastronomy Summit, Salih conversou com o GLOBO sobre terrorismo alimentar, relação entre fome e guerra e alimentação de populações inseridas em zonas de conflito.

“Há uma conscientização global de que a fome está crescendo e os governos autocráticos controlando comida. O que é um problema porque há soluções”, destaca o curdo, que é Diretor Administrativo da FiscalNote, empresa de software, dados e mídia sediada em Washington. Aos 41 anos, ele e sua família saíram exilados do Iraque em 1979.

O que é terrorismo alimentar?

O conceito é transformar comida em arma. É muito antigo e vem sendo usado ao longo do tempo para controlar a população por parte de organizações terroristas e governos. A ideia por trás disso é usar o desespero humano. É, portanto, um ponto central dos conflitos no mundo hoje.

Qual a relação entre a fome e a guerra?

O ser humano com fome pode se transformar na pior versão de si. Se mesmo com acesso à comida podemos chegar ao nosso pior, imagine sem. Se a realidade diária de um lugar é a fome, você é capaz de fazer coisas que jamais faria. É assim que as organizações terroristas conseguem aumentar suas redes, fazendo com que as pessoas passem fome absoluta para, daí, oferecerem comida e dizerem: “se você quer comer, tem que lutar por mim, sua única escolha é lutar”. Faminto, você é capaz de dizer sim e matar uma pessoa. E, se for preciso, você deixa seu país. Comida em troca de controle é o modo mais fácil.

Em mais de três anos, o conflito no Iêmen já provocou cerca de dez mil mortos, segundo a ONU. Já são mais de 1,8 milhão de crianças iemenitas desnutridas, mais de 400 mil delas sofrendo de desnutrição grave. Em que outros lugares as crianças estão morrendo de fome?

O maior problema, como você disse, são os pequenos que não recebem nutrição suficiente nos primeiros mil dias de vida. Os bebês no sul da África, por exemplo, não recebem nutrientes necessários para o desenvolvimento do cérebro, que morre. Mas não é só na África. Na Venezuela, 23% das crianças não têm nutrição o suficiente. No Sudão do Sul, estima-se que uma em cada três famílias precise de alimentos com urgência. No estado de Borno, na Nigéria, a previsão é que 300 mil crianças tenham desnutrição aguda grave em 2018.

No ano passado, a Organização das Nações Unidas intensificou os seus programas de assistência ao Iêmen para fornecer ajuda alimentar a 14 milhões de habitantes, cerca de metade da população do país, ameaçados pela fome. O que deu errado?

Todos nós sabemos quem são os maiores terroristas do mundo, e todos eles usam o terrorismo alimentar. Tirar uma coisa e dar de volta é o artifício mais barato numa guerra. Uma vez que as pessoas estão desesperadas não podem lutar contra, porque fazem de tudo para comer. Alguns regimes autocráticos fazem seu povo passar fome e tornam a comida inacessível e cara.

Faminto, você é capaz de dizer sim e matar uma pessoa. E, se for preciso, você deixa seu país. Comida em troca de controle é o modo mais fácil

Apenas 45% das estruturas de saúde funcionam no Iêmen. Na cidade de Hodeida, o sistema de água está perto de entrar em colapso, ameaçando quase metade da população. A falta d’água mata tanto quanto a falta de comida?

A falta de água mata, e por isso as mudanças climáticas são culpadas, mas as ações dos homens também. O Iêmen caminha para o desastre. Na Síria, o nível de água estava muito baixo, e o governo permitiu que as pessoas a retirassem mesmo assim, o que trouxe a escassez.

Qual a sua opinião sobre a Venezuela?

Todo mundo sabe o que ocorre no Oriente Médio, mas não se sabe sobre o que está havendo na Venezuela. A situação mais difícil hoje é a da Venezuela porque não existe luta com outros governos, o foco é um único: controlar as pessoas. Os países no Oriente Médio lutam entre si e às vezes contra a Rússia, e a gente consegue entrar. Mas na Venezuela tudo é escondido. O governo não reporta nada para a comunidade internacional e não aceita ajuda. O embargo faz a situação piorar.

Venezuelanos atravessam fronteira de volta ao seu país após viajarem até a Colômbia para comprar alimentos; escassez e elevada inflação gera insegurança alimentar Foto: SCHNEYDER MENDOZA / AFP

 

Como tem atuado a comunidade internacional?

Especialmente no Oriente Médio, quer ensinar as pessoas a serem autossustentáveis. Mesmo nos campos de refugiados, alguns grupos entram de forma escondida, porque ninguém pode saber que estão lá, senão seus membros morrem. Apresentam-se como refugiados e ensinam a cultivar comida, quais plantas seriam geradas naquele solo, como comer, cozinhar, além de medicina e engenharia. Daí eles podem lutar por eles mesmos, sem depender do governo e dos terroristas.

E a ajuda humanitária?

Eles não têm armas, então não podem chegar tão longe. Geralmente trabalham em tendas junto com os militares, que sempre estão se mudando de zona para se proteger. Não significa que o Programa Mundial de Alimentos não coloque sua vida em risco. Os programas internacionais estão ajudando, mas é muito difícil ter acesso a estas áreas, porque os governos montam bloqueios.

Como empresas como a sua, FiscalNote, podem contribuir?

Com tecnologia. Entre as muitas ações, a primeira delas é olhar para tendências históricas e fatos de agora, comparar para prever. Prevendo, tem-se a solução do problema, tirando pessoas do seu território, arrumando comida. A gente vem desenvolvendo soluções neste sentido para contornar mais rápido a situação. Há dados infinitos circulando por aí, e as empresas que são como a FiscalNote puxam as informações para si, fazendo uma série de perguntas para as máquinas. E as respostas começam a surgir. Se aquilo se repete como padrão, é como se soasse um alarme, apontando riscos ou oportunidades.

No Chifre da África, a seca é outra causa importante: a morte dos rebanhos na Somália tem devastado comunidades inteiras. De que forma a tecnologia pode ajudar?

O jeito mais fácil de olhar para isso é pensar numa questão que se manifesta em todos os cantos. Pegamos informações de redes, políticos, reguladores e outras fontes acadêmicas, nossos computadores captam qualquer informação que esteja razoavelmente estruturada. E através de um processo passa a ver só o relevante. O time da empresa olha para a questão e começa a trabalhar junto. Desde tomar ciência até o planejamento, é possível precisar as ações e quem são as pessoas que serão engajadas. Você deveria falar com esta companhia, esta ONG, esta pessoa. Desta forma a gente consegue as coalizões. Tudo fica em atualização o tempo todo, em tempo real. Medimos métricas, e indicadores com quem se engajou.

Qual é o papel da gastronomia social em situações de conflito?

Olhar para a comunidade internacional como uma plataforma voltada a vozes que não são ouvidas. Tem muitos projetos focados no aspecto da educação e do conflito, em dar acesso à alimentação mais saudável. A gente joga para cima quem não tem condições de se erguer sozinho. Vamos, de fato, aos campos de refugiados com vontade de mudar aquela realidade.

 

Reproduzido de: https://oglobo.globo.com/mundo/terrorismo-alimentar-central-conflitos-contemporaneos-diz-economista-curdo-23391922